segunda-feira, 7 de novembro de 2011

FRACASSO ESCOLAR:CONTRIBUIÇÕES DA PSICOPEDAGOGIA

  Dificuldade  de  Aprendizagem ou  dificuldade de  Ensinar ?


                                                                       Maria Angélica Bernardes santos*


*  Professora, pedagoga, com especialização em Orientação Educacional e pós-graduada em Psicopedagogia pelo   CEPEMG, membro fundador da  Associação Brasileira de Psicopedagogia/Sessão Minas Gerais .
Texto escrito em 1999.


A história  tem nos mostrado diferentes fatores que podem levar um aluno a manifestar dificuldade de aprendizagem escolar.  Penso que poucos deles poderiam , por si só, justificar a não aprendizagem e, quando tomamos conhecimento de trabalhos como o de Vygotsky, na Rússia, e de Feuerstein, em Israel, questionamos, inclusive quanto à tão decantada impossibilidade de aprender dos portadores de paralisia cerebral.
         Dentre os fatores apontados, ao longo do tempo, muitos responsabilizam o próprio aluno pelo seu fracasso, alguns buscam causas no contexto sócio-cultural, outros na escola, como reprodutora da dominação. Nas duas últimas décadas tem-se questionado mais a postura pedagógica, mas quase sempre no reducionismo de buscar um culpado único para uma questão que é contextual.
         Para compreender a dificuldade de aprendizagem, penso que preciso ter claro o processo de aprender. Por isso, e também porque o  (não)desenvolvimento cognitivo também tem sido apontado para justificar a dificuldade de aprendizagem do aluno deter-me-ei um pouco na Psicologia do Desenvolvimento. Esse desenvolvimento é olhado diferentemente pelas inúmeras teorias que tentam explicar como se dá a aprendizagem no homem. Elas podem, a meu ver, serem englobadas em três grandes grupos:
         1º . Teorias que consideram a criança como um ser que nasce vazio de inteligência, sendo que esta se formará a partir da aprendizagem ocorrida de fora para dentro,isto é, a criança só aprende se um outro ensinar.
         2º . Teorias que consideram a inteligência já inscrita na estrutura genética, não havendo desenvolvimento, no sentido de construção, mas "amadurecimento". A aprendizagem é totalmente dependente desse amadurecimento e acontece por insight no momento em que o organismo atinge a prontidão.  Essas teorias justificaram para os governos, as leis que limitavam a idade mínima de sete anos para ingresso na escola pública. Nessa visão, a criança só aprende após atingir a maturação orgânica da inteligência e não há como interferir nessa maturação.
         3º . Teorias que consideram tanto a estrutura genética quanto a influência externa em interação e desenvolvimento na busca de um equilíbrio entre essas duas forças; o externo desequilibrando as certezas, estas questionando o objeto; a inteligência encontrando novas certezas num constante estruturar - desequilibrar - reestruturar.  Um dos estudiosos a teorizar sobre essa interação entre a estrutura genética e o meio onde o homem vive foi Piaget. Ele chama aos conhecimentos sobre o mundo externo  de  Físico  e  Social   e    ao conhecimento   interno de  Lógico - matemático ( estabelecimento de relações). A aprendizagem é, substancialmente, a reorganização das estruturas internas a partir de incertezas provocadas por algo externo. Dentro do que sei existe algo que não sei. A tomada de consciência desse não saber passa a  constituir uma falta que me deixa em estado de desequilíbrio o   que busco reencontrar. Aprender é reorganizar minha forma de pensar sobre algo que sei e algo que não sabia.  ( Ver o quadro Aprendizagem e Alimentação em A mulher Escondida na Professora, de Alícia Fernandez. )
         Os fatores de D.A. que estão na própria criança e/ou em sua família já foram  considerados, pela escola, como a causa principal, durante os muitos anos em que se proliferaram as indicações neurológicas e/ou psicopatológicas das crianças que não se adaptavam ao sistema escolar. Hoje, reconhecemos a existência desse tipo de dificuldade, mas pesquisas demonstram que em número infinitamente aquém dos divulgados na época áurea da psicologia experimental.
         Lendo artigos do neurologista,  Dr. Saul Cypel, pesquisador,  principalmente no sul  do Brasil  e  Inglaterra , encontramos dados com que ele comprova que a cada cem casos de alunos encaminhados ao neurologista com indicações de DCM e dislexias em geral, apenas três são portadores de disfunções. Ele demonstra, ainda, que não existe uma relação direta entre resultados positivos ou negativos de disfunções no exame eletroencefalográfico e a dificuldade de aprendizagem. Portanto essa questão não justifica o número de alunos com dificuldade de aprendizagem.
                   Diante de questionamentos às teorias que imputavam, ao aluno, toda a responsabilidade pelo seu fracassso, passa-se a buscar as dificuldades no contexto sócio-cultural dele, o que amplia a discussão mas não se desloca do aluno. A "deficiência" cultural justificaria que a dificuldade se concentrasse mais nas classes populares. Esse é um argumento que pode ser contestado quando se considera as questões culturais como diferenças e não como deficiência . Os nossos alunos de favela,  têm um desenvolvimento espaço-temporal, muitas vezes,  mais e precocemente desenvolvidos do que a classe média. Realizam cálculos para os quais precisaríamos da calculadora que eles têm no cérebro pela própria necessidade de sobrevivência.  Essas diferenças, dificilmente são consideradas e valorizadas pela escola que sempre quer iniciar os cálculos pelo "conjuntinhos de cinco" inclusive para esses alunos que resistem a retroceder. Quando partimos do sistema monetário ou do sistema de medidas, essas operações, aí sim, fazem sentido para eles por se relacionarem ao seu dia-a-dia. No entanto, o programa escolar desvalorizou, anos após anos, esse trabalho, sugerindo o estudo do sistema de medidas e monetário como noções a serem trabalhadas ao final do último bimestre. Com que intenção ? E por que nós professores nos submetemos a esses programas ? Por que, durante muitos anos aceitamos o argumento de que crianças de periferia têm deficiência cognitiva por sua "deficiência cultural?
         Assim como às diferenças sociais, à  questão das raízes culturais não podem, também, em minha opinião[1] , acusar de causadora de dificuldade escolar. Se esses alunos estivessem em outra escola, onde os educadores comungassem de sua cultura, essa causa se dissolveria na proximidade de seus valores e os valores da professora. Mas ocorreria o risco de se cristalizar na própria cultura, sem avançar no conhecimento científico, acentuando a diferença de classes, o que não é ou não deveria ser objetivo da educação escolar. O objetivo deve ser, justamente, um fazer que promova para todos, o domínio da cultura  erudita. No caso da classe dominante e da classe média-alta, esse já é um conhecimento que vivenciam, ao nível oral e o papel da escola é oferecer e sistematizar a nível do escrito.
         Já na classe popular, onde há predomínio do saber empírico e de valores culturais  diferentes dos valores dominantes, os alunos, quase sempre, chegam à   escola sem o domínio do conhecimento científico e da linguagem culta padrão. A dificuldade que existe, para a escola, é  que os alunos deverão aprender os valores dominantes e o conhecimento científico como algo a mais, além da sua cultura. Seria um traduzir a sua linguagem em linguagem padrão, usar seu saber empírico para  chegar ao conhecimento científico mantendo e dominando os valores culturais  das duas classes; mantém-se sua linguagem, seus saberes e seus valores, mas os contextualiza,  sistematiza e faz opção na comparação com outros.
         Também são muitas as pesquisas brasileiras que, desde a década de oitenta, vêem provando, não apenas que é possível esse trabalho, mas que os alunos têm prazer em ensinar, aos professores, os seus saberes, discutí-los e mantê-los, por opção, sabendo que há outros, ou reconsiderá-los em função da apropriação do conhecimento científico.
         Rufino ( 1995 ) , buscando as origens do contexto cultural brasileiro e suas contradições, encontra na modernidade e de acordo com os padrões europeus, portanto muito recente, as raízes da nossa cultura dominante e escolar, que ele chama de  Cultura Moderna. Quanto à cultura popular, suas raízes são milenares e é uma forma de viver, agir e pensar o mundo de acordo com os outros contextos culturais, que ele chama  Cultura Arcaica.
         No Brasil, indígenas e negros são povos de cultura essencialmente arcaicos, o que Rufino justifica analisando características que são o sentido instaurador dessas culturas.
         Nossa cultura absorveu a maioria das características dos dois contextos mas com predomínio de um ou outro nas classes dominantes ou populares e com um conflito constante na classe média que tem muito das crenças arcaicas mas deseja e vive o contexto moderno.
         Por isso é mais fácil ao aluno da classe dominante e das classes média-alta, aprender o conhecimento escolar. Quanto ao aluno da classe popular, com um contexto cultural tão diferente da cultura moderna predominante na escola, o desrespeito às suas origens, sim, é que lhe dificulta a aprendizagem. Esse desrespeito se dá, principalmente, porque muitos educadores desconhecem, além dessas questões culturais, outras questões que são essenciais ao entendimento e à (inter) relação de sala de aula, entre elas as teorias que explicam a gênese do desenvolvimento e as abordagens de ensino coerentes com a teoria que é a base da prática educativa de cada um.
         Para uma melhor compreensão dessa problemática, tentarei, em um quadro comparativo, definir as abordagens dentro dos principais grupos teóricos a que me referi no início deste texto e suas relações com o aluno, o pedagógico, o sócio- político e o cultural. Esse quadro foi construído a partir dos textos sugeridos na bibliografia, de palestras ouvidas com Daniel Alvarenga e Joel Rufino, entre outros, e da resignificação de minha prática em sala de aula.
         Por seu reducionismo, englobaremos os dois primeiros grupos em Teorias Vigentes, isto é, teorias  que partem do princípio de que as coisas, as leis já estão definidas e praticamente imutáveis. Quem as adota, vive-as na sociedade, no dia-a-dia das famílias, das igrejas, das comunidades, etc.


         Refletindo sobre as características apontadas no quadro, podemos supor que  alunos com dificuldade de aprendizagem escolar cujas abordagens de ensino se situam no segundo grupo de teorias sofrem de  "bulimia" ou "anorexia"[2] cognitiva.  E alunos cujas abordagens de ensino, da escola onde estudam, se situam no primeiro grupo e apresentam sintomas de dificuldade, as causas podem ser do próprio aluno mas, muito provavelmente, o que há é dificuldade de se ensinar.


           
Sugestão Bibliográfica


FERNÁNDEZ,   Alícia.    A Inteligência Aprisionada. 2 ed .  Porto Alegre: Artes Médicas. 1991.


____________________ A  Mulher  Escondida  na  Professora.  Porto Alegre : Artes           Médicas  Sul.    1994.              

FRANCHI,  Eglê  Pontes.   E as crianças eram difíceis ... a redação na escola.   São Paulo:         
      Martins  Fontes:1993.

VYGOTSKY, Leontiev.  Pensamento e Linguagem.  São Paulo: Martins Fontes. 1993.


MACEDO,Lino.  Ensaios Construtivistas  São Paulo: Casa do Psicólogo. 1994.


ZIRALDO.  Uma Professora Muito Maluquinha . São Paulo: Ática. 1995.

                                  


[1]  Apoiada nas pesquisas de diversos sociólogos, antropólogos e historiadores, entre eles, Magda Soares, Eglê Pontes, Joel Rufino, Vygotsky, que foram quem melhor me responderam sobre esta questão.
[2]   ver nos livros de Alícia Fernandez , esclarecimentos sobre esses termos e seus significados.

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