domingo, 8 de agosto de 2010

O Saber e o Não Saber (...)

Texto enviado a Alícia Fernández e publicado na revista EPSIBA, em Buenos Aires.
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Belo Horizonte, 11 de Novembro de 1996


Prezada Alícia



Resisti muito em atender a seu pedido, escrevendo e lhe enviando relato dos casos em alfabetização na sala de aula.
Hoje o faço porque consegui estabelecer um elo entre dois momentos que vivenciei, justificando assim o relato que antes me parecia muito pobre. Nesse elo, que sou eu e minha intervenção nos dois casos, é que vejo uma contribuição que possa ser oferecida a outros profissionais.

Maria Angélica*
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O Saber e o Não Saber da professora          Influenciam  o Sucesso e/ou o Fracasso Escolar


Sumário

O texto ilustra duas histórias vividas pela mesma professora em épocas distintas de sua vida profissional e que ilustram a contribuição do conhecimento teórico sobre o processo de alfabetização no trabalho com crianças em dificuldade de aprendizagem.

A primeira história fala de Kennedy, uma criança em nível silábico de construção da leitura e escrita e que não teve a interferência adequada que a levasse a passar para o nível alfabético. A segunda relata o caso de Mônica, aluna de alfabetização que carregava o estigma de imatura. Com a interferência da professora, ela pode se libertar e crescer como escritora e leitora que já era.



Mãos Atadas (caso 1)



Ele escrevia.

Havia um problema, porém. Ele usava quase que apenas consoantes. Quando aparecia vogal, vez ou outra, era somente a letra E .

E repetia pela terceira vez a 1ª série em escola pública estadual, de Minas Gerais.

Kennedy era seu nome. Era um dos motivos de inúmeras noites que eu, sua professora passava em claro... motivo também das perguntas sem respostas acumuladas ao longo daquele ano de 1970 e que se juntavam a outras guardadas em dois anos de magistério.

Ele sabia escrever pois eu conseguia “ler” suas redações de até duas páginas escritas. Havia coerência em seus textos...havia pontuação... mas faltavam vogais, muitas vogais... quase todas.

Porque ele não aprendia a escrita correta? Que nota mereceria? Não poderia ser zero porque eu entendia sua escrita, outras pessoas também, mas nenhuma palavra tinha a grafia correta.

Procurei supervisão, direção da escola, colegas. Eram unânimes em afirmar que ele não sabia e que zero deveria ser sua nota.

Ao final do ano, Kennedy foi reprovado mais uma vez e eu me senti impotente, derrotada, cheia de perguntas sem soluções.



Em 1986, Emília Ferreiro e Teberosky me deram as respostas e me fizeram recordar-me de Kennedy... será que conseguiu escrever? Conseguiu ser aprovado? Ou desistiu de estudar? ... Na escola não souberam me dizer, pois não se recordavam dele.

Hoje eu saberia trabalhar com Kennedy. Saberia como criar um conflito para que percebesse a necessidade de uso da vogal.

Penso que posso compreendê-lo. Seu nome não necessitava de outras vogais, além do E, para ser escrito. E sua referência para a escrita de outros nomes permaneceu sendo o seu próprio nome.

Kennedy permaneceu silábico por três e talvez muitos anos porque nós, suas professoras, não éramos competentes para responder a nossas perguntas. Quem poderia ter ajudado a esta professora?



Desfazendo Rótulos ( caso 2)



Primeiro dia de aula. Apontam-me Mônica e me alertam: “-Observe-a bem porque ela tem dificuldade... repetiu o pré... foi difícil convencer a mãe de que ela precisava repetir porque não tinha maturidade! A mãe, por isso, fica muito insegura.”

Mônica, gordinha... maior e mais amadurecida do que seus colegas, tomava decisões, liderava um grupo de meninas, ajudava àqueles que tinham mais dificuldade; tinha muita iniciativa e se sobressaía. Dava sugestões, inclusive a mim, de como poderíamos solucionar questões. Poeta, escrevia textos lindos.

Um dia, ao final das aulas, desço à sala da diretora para entregar-lhe um material. Sentada ao lado dela, na sala de espera, uma senhora aponta as atividades de criança feitas no caderno e reclama da professora. Noto um certo constrangimento com minha presença. A diretora, então, me apresenta: -Esta é a mãe da Mônica e ela está me pedindo que troque sua filha de turma porque você não corrige os erros do caderno. Ela teme que Mônica tenha que repetir o ano novamente ( era mês de Março, ainda).

Peço para ver o caderno e encontro algumas palavras escritas com hiper-correções e outros poucos erros ortográficos ( trocas de g/j , s/z ).

Explico à mãe que não tenho realmente o hábito de corrigir os cadernos de aula, mas que aponto as correções para serem feitas pelos próprios alunos; que esses erros são aceitáveis na fase em que Mônica se encontrava e que eram trabalhados em outros momentos de aula, específicos de ortografia; que, na verdade, aqueles erros me diziam que Mônica já estava em um nível de desenvolvimento mais evoluído que seus colegas. Que muitos dos colegas dela não erravam nas cópias porque reproduziam letra por letra e ainda não pensavam a respeito da escrita. Mônica lia o texto e reescrevia, já não fazia simples cópia e era uma das melhores alunas da turma.

Foi visível a mudança de olhar da mãe diante dos trabalhos de Mônica e, a partir daquele dia, ela se livrou do rótulo de “criança imatura” recebido por ter se permitido ser criativa e pensar a respeito da escrita e da construção do código.

PROFESSORA E PSICOPEDAGOGA ?

PROFESSORA E PSICOPEDAGOGA ?
PROFESSORA - PSICOPEDAGOGA ? PSICOPROFESSORA?

Maria Angélica Bernardes Santos

O texto é um testemunho de como é importante que professores estabeleçam relações de confiança e segurança na sala de aula, principalmente quando há baixa de autoestima. Esse vínculo não é suficiente mas é necessário para que aconteça a aprendizagem.


O nome dele é tão significativo que é difícil conseguir um codinome para relatar seu caso; um nome escrito com muitas letras, importado e com a pronúncia inglesa das vogais, do h e do w. Eu o conheci nos meus primeiros anos de professora.
No início daquele ano de 1974, ele repetia, pela quarta vez, o Período Preparatório para a alfabetização pelo Método Global de Contos. As atividades avaliativas de prontidão eram padronizadas na escola em que trabalhávamos e ele já memorizara as respostas e acertava tudo. Entretanto, a professora do ano anterior já avisara: - Ele acerta porque já conhece todos os exercícios, mas não sabe ler nem escrever nada, nem mesmo o próprio nome. Quando começar com a alfabetização, você verá que ele não aprende.
As demais professoras ainda reforçavam: - Coitada de você! Ele não para; bate e briga com todos os colegas, não faz os deveres, seus cadernos ficam rasgados e vive sujo.
Realmente, ele era muito agitado - não parava na carteira, saía das filas, brigava no recreio, mas seus olhos refletiam uma alegria de viver e um prazer enorme em mostrar as atividades corretas que terminava antes dos colegas. Entretanto, havia um fato intrigante: ele não escrevia o próprio nome e se recusava a copiá-lo da ficha; assinava escrevendo o apelido com quatro letras apenas e era só isso que escrevia.
Após muitas tentativas de mostrar-lhe a importância de se escrever o nome e de vários diálogos(?)* , comentei esta resistência em uma reunião. Então, uma de suas ex-professoras falou-me do fato de que ele não gostava do nome e que não adiantaria tentar fazê-lo escrever.
De posse dessa informação, pensei uma forma diferente de valorizar o nome dos alunos. Minha hipótese era que, se ele percebesse algo de valor ou belo no nome, talvez quisesse aprender a escrevê-lo.
A secretaria da escola deixou-me um aviso de que eu não estava fazendo as chamadas diárias e esta foi a dica de que eu precisava. Eu sempre me esquecia desta parte burocrática da escola. Com essa turma, entretanto, decido fazer da chamada o momento de valorização dos nomes.
Diariamente, executava um verdadeiro ritual: cada nome lido era transformado numa verdadeira música e acompanhava-a com um comentário específico. Por exemplo: Márcio... me lembra o mar e a onda que vem forte e volta de mansinho para junto das outras...
Quando leio o nome do nosso aluno com dificuldade, pronuncio-o solenemente e digo: Parece nome de presidente... de alguém muito importante... quem sabe será mesmo! E continuo a chamada, parando um pouco a cada nome e olhando para o nomeado.
A troca de olhares e o ritual de chamada começa a surtir efeitos.
Após algumas semanas, ao entregar-me uma folha de exercícios, ele me pede: - Me ensina a escrever ................? É a primeira vez que pronuncia o próprio nome na escola.
A partir das letras de seu nome, ele começa a inventar sua escrita. Há uma mudança radical, inclusive física; o corpo, o olhar, a expressão refletem que a alma está bem.
Muito tempo depois, analiso a aprendizagem e as dificuldades de AISA ( resolvi dar-lhe um apelido.) Parece-me que não aprender a ler era uma forma de não reconhecer o próprio nome, de poder negar um nome com o qual não se identificava. Outro fato, porém me fez pensar que não bastava aceitar o nome; que foi importante, também, a relação estabelecida; uma relação de afeto, respeito, confiança, e o diálogo que mantivemos.
É que ele, como outros alunos que se sobressaíram , foi remanejado para outra turma mais forte, onde não houve esse vínculo. Ele voltou a ser o aluno sujo e desordeiro, de antes - a professora não o aceitou. Foi preciso que ele voltasse à nossa turma para dar continuidade ao seu processo de alfabetização.

Há dois anos, me encontrei com ele em uma galeria. Me reconheceu e me contou seus sucessos como profissional. Recentemente, foi um dos poucos aprovados em um concurso federal e estava de partida para Brasília.
Pensei: - Valeu a pena ter sido psicoprofessora, antes de ser psicopedagoga.




* Maria Angélica Bernardes Santos ( professora e psicopedagoga)
email: bila.bernardes1950@gmail.com